Arquivo do mês: março 2010

“A poesia pode esperar?”

Bonita, carioca com ar de inglesa, inteligente, hábil com as palavras. Assim foi Ana Cristina Cesar, daquele tipo de pessoa que que surge na Terra de tempos em tempos e, por não ser comum, desaparece, geralmente, de maneira trágica. A musa dos poetas marginais suicidou-se há 26 anos, mas sua expressão poética, um tanto quanto confessional, ainda deixa marcas e continua a apaixonar novos leitores. A poeta que lia para escrever.

Para quem não conhece, explico, Ana fez parte, meio que sem fazer, dos poetas dos anos 70 conhecidos como “marginais” como Chacal, Chico Alvim, Cacaso, Wally Salomão. Ela foi incluída nesse meio mais pelo contato com eles do que pela sua poesia, que, devo dizer, não se assemelha muito com a produção poética dos outros. A escrita de Ana, na minha opinião totalmente parcial, é maior do que a deles. Ela transfigura o gênero confessional, prende o leitor porque consegue colocar  fragmentos da sua biografia em sua poesia. Mas não se engane, escritora experiente que era, o real em seus textos é efeito calculado e quando você percebe, está preso na armadilha, é tarde demais para voltar atrás.

Cesar escreve com um vocabulário até que simples, mas a semântica é que atrapalha, as ligações entre um verso e outro são pouco claras, e isso é proposital, é um grande trabalho de reescrita do mesmo poema, um trabalho de corte, como um artesão que vai talhando um pedaço de madeira para dar-lhe  forma.

É um fato que uma boa parte dos leitores de Ana a conheça e identifique-se com a mesma apenas pelos “rasgos de verdade” como disse, se não me engano,  Annita Costa Malufe, e pela trágica história da poeta depressiva que se atirou do sétimo andar.  Aliás, essa é a cena mítica que se constrói ao redor da escritora. Com apenas um livro publicado em vida, a maior parte das poesias que temos advém de dois livros póstumos: Inéditos e Dispersos, publicado em 1985, dois anos após a morte da escritora, organizado pelo amigo e então curardor de sua obra Armando Freitas Filho  e  Antigos e soltos publicado em 2008 sob a organização de Viviana Bosi, ensaísta e professora na Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, além de estudiosa dessa gerção de poetas dos anos 70.

Do primeiro livro póstumo é interessante destacar que os poemas são dispostos em ordem cronológica, então podemos perceber que Ana C. começou a escrever bem cedo, na verdade mais cedo do que os poemas do livro datam. Ela, reza a lenda, aos quatro anos de idade, ditava poemas à mãe que pacientemente os escrevia. Já no segundo livro, e ao meu ver um pouco mais interessante, os escritos foram encontrados por essa mesma mãe depois da morta da filha em uma pasta rosa, e são divididos tal como na pasta. E o mais legal, o que torna o livro uma obra de arte, fac-símiles dos poemas permeiam todo o livro que tem páginas cor-de-rosa.

Para mim, sem dúvida alguma, e sendo novamente parcial, Ana Cristina Cesar não foi apenas a maior poeta da geração dos anos 70, foi a maior poeta brasileira do século XX, que Adélia Prado, Hilda Hilst, Cecília Meireles e Cora Coralina me desculpem, mas o tom particular da poesia de Ana que ganha aspectos universais, até hoje fala alto ao coração e aos olhos de quem a lê. E sendo bastante ousada, devo dizer ainda que, usando a definição de Clássico feita por Ítalo Calvino (“Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”), a poeta em questão é uma escritora clássica.

O que me encanta, o que me atrai tanto na obra da Ana Cristina é essa necessidade de escrever como que para se livrar, o aparente fingimento de que é tudo muito natural quando na realidade não era.

Não, a poesia não pode esperar.
O brigue toca as terras geladas do extremo sul.
Escapo no automóvel aos guinchos.
Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando
digo hoje, falo precisamente deste extremo rispido,
deste ponto que parece último possível?

A garganta sai remota,
longe de ti mal creio que te amo,
corto o trânsito e resvalo

Que lugar ocupa este desejo de frutas?

Esta é a primeira folha aberta.

Ana Cristina Cesar in: Inéditos e dispersos.

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